A elite brasileira elegeu o MST como seu inimigo número um. Está
certa. Desde o descobrimento do Brasil, o MST é o primeiro movimento
popular a desafiá-la abertamente, e com êxito. A elite admite que
o povo possa pedir respeitosamente. Mas exigir, reclamar, denunciar, tomar iniciativas
por conta própria, nunca. Pois isto é precisamente o que o MST
faz: ocupa terras, bloqueia a entrada de prédios públicos, fecha
estradas, destrói plantações de transgênicos, sem
pedir licença para ninguém.
A indignação torna-se ainda maior pelo fato de que o MST faz
política. Seus dirigentes e militantes são afiliados a partidos
políticos, candidatam-se a cargos eletivos, apoiam publicamente candidatos
a cargos majoritários. Como a elite considera a política seu "território
de caça privativo", a reação é violenta. Mas
isso ainda não é tudo: o MST organiza e participa de todo e qualquer
protesto social. Não há manifestação feminista,
ato público pró-indígena, comício contra o pagamento
da dívida externa, sem a presença das bandeiras do movimento e
sem a palavra inflamada de seus dirigentes. O tom dessas manifestações
é sempre o mesmo: a necessidade de completar a construção
da Nação brasileira. O MST é um movimento político
de caráter nacionalista. Um nacionalismo temperado pelo mais puro internacionalismo,
que não pensa em isolar o Brasil, mas alinhá-lo com as nações
que lutam para criar uma ordem internacional democrática, em oposição
ao mundo governado por sete potências.
Enquanto questiona, desafia, provoca, o MST mantém escolas em todos
os Estados do país, para educar filhos de assentados da reforma agrária
sob princípios completamente distintos dos que comandam o sistema de
educação individualista das escolas da elite. Além disso,
organiza, através de seus militantes, a produção das famílias
assentadas. E para evitar que sejam exploradas por agro-indústrias, atacadistas
e exportadores, organiza também a transformação industrial
e a comercialização dos seus produtos. Faz tudo isso em condições
extremamente difíceis. Desde a sua fundação, o MST registra
dezenas de militantes mortos, centenas de feridos por jagunços ou pela
polícia, outros tantos processados criminalmente. A democracia brasileira
não tolera um movimento popular não submisso à elite dirigente.
O que move o MST a realizar esse ciclópico trabalho? Tudo se resume
em uma palavra: mística.
Mística, "percepção do caráter escondido,
não comunicado da realidade", que, como explica Leonardo Boff, "não
é o limite da razão, mas o ilimitado da razão".(2)
A mística do MST tem raízes no milenarismo camponês. Em
todo o mundo e desde sempre, o camponês é a pessoa que aspira e
acredita na possibilidade de um mundo justo e em harmonia com a natureza. Em
nome dessa utopia, as massas rurais têm se levantado, através dos
tempos, contra o mundo real, sempre injusto, cruel e desequilibrado.
Em seus luminosos trabalhos sobre o milenarismo, Eric Hobsbawm traçou
as características desses movimentos. Traços que se repetem desde
os taboritas e anabatistas (século XV), os levantes dos camponeses ingleses,
andaluzes e sicilianos do século XIX, até as revoluções
socialistas modernas do México, Rússia, China, Cuba e Vietnam.
Em todas elas nota-se o inconformismo do homem do campo com o advento de um
mundo que ele não compreende e que destrói o seu modo de vida
modo de um passado idealizado como Idade de Ouro. Em todas essas manifestações
resplandece a fé nas grandes transformações, no homem novo,
no mundo regido pela consciência social. É esta mística
que questiona uma humanidade domesticada e aviltada pela submissão a
uma ordem capitalista desumanizadora, contudo aceita como inelutável.
A mística camponesa provoca antagonismos, mas gera igualmente adesões
definitivas e tem efeitos concretos. Crêem alguns que não, que
as rebeliões camponesas não conduzem a uma ordem social nova porque
o culto do passado não tem o poder de organizar o futuro. Sem entrar
no mérito desta discutida tese, o fato é que todas as revoluções
sociais do século XX tiveram por base e condição de êxito
a esperança camponesa em um mundo melhor.
Pois bem, a base da mística do MST é essa cultura da população
rural do país. É na força telúrica dessa população
que o movimento alicerça sua fé na possibilidade de mudança
e extrai os valores, os sentimentos, as intuições que alimentam
a sua mística. A esse alicerce somam-se duas grandes vertentes místicas:
a cristã e a socialista-marxista.
O MST nasceu no sul do país, atrás das casas paroquiais, fruto
da indignação de um número de camponeses jovens do sul
do país, revoltados com a devastação que a modernização
capitalista da agricultura estava fazendo nos modos de vida, nas tradições,
nos valores de cultura de seus pais. Abençoados pelo seu Bispo, esses
jovens militantes cristãos jogaram-se por inteiro na luta contra essa
modernização empobrecedora. Não contra a técnica,
mas contra o uso dela para exacerbar a dominação do capital sobre
o trabalho, ampliar a destruição do meio ambiente, esmagar a cultura
do homem do campo. Nessa luta foram despertando para os valores humanistas da
cultura marxista e tornaram-se socialistas convictos.
A mescla desses três elementos o milenarismo camponês; a
fé cristã na vida eterna; e a esperança socialista de construir
aqui na terra uma sociedade igualitária e democrática deu
como resultado a mística do MST. É fácil comprovar essa
afirmação quando se atenta para os seus valores. Ademar Bogo,
um dos mais influentes dirigentes do MST, enumerou-os assim: solidariedade,
indignação, compromisso, coerência, esperança, auto-confiança,
alegria e ternura.(3) Vale a pena vê-los mais de perto.
O valor da solidariedade é visualizado não apenas no nível
da família, da vizinhança e do país. Projeta-se nos interesses
de classe, dentro e fora do território brasileiro. É solidariedade
com todos os injustiçados do mundo. "Embora tenhamos que reavivar
os projetos nacionais, pois é onde a nação deve resistir",
diz a mística do MST, "não podemos nos fechar aos problemas
domésticos, até porque muitos deles só se resolvem com
lutas internacionais".
O valor da indignação completa o da solidariedade. Na mística,
a indignação contra qualquer injustiça em qualquer parte
do mundo deve ser a característica do militante.
O valor compromisso é o respeito aos propósitos feitos coletivamente
e se completa com o valor da coerência, que exige a correspondência
entre a palavra e a conduta.
Para o povo não existem derrotas definitivas e nisto consiste o valor
da esperança, que se soma com o da auto-confiança: superar o complexo
de inferioridade que deprime o homem do campo.
No campo dos valores que o militante deve cultivar estão a alegria que
vem da luta e a ternura, "que não significa perdoar o inimigo e
deixá-lo ir para que se reabilite e volte mais preparado para nos atacar,
porém, jamais desqualificá-lo enquanto ser humano".
Todos esses valores são coroados pela utopia um viver "como
se estivéssemos sempre nos preparando para um grande encontro".
1. A liturgia
Toda mística expressa-se numa liturgia, ou seja, numa linguagem de símbolos
que une a palavra ao gesto. Cada liturgia é uma estética que traduz
a visão transfigurada do mundo, "resgate de um drama que conhecerá
um fim bom".
A liturgia do MST é bastante diversificada e muito bela, na singeleza
das formas que desvelam a presença da cultura do povo rural. Essa cultura
expressa a luta de uma população desde sempre oprimida por um
quotidiano vivido no limite da sobrevivência física; humilhado
pela prepotência da classe social que a explora; aviltado por um trabalho
que se transformou em jugo. O fantástico é que, apesar dessa condição
de vida, o camponês brasileiro tenha sido capaz de produzir beleza, solidariedade,
ternura, alegria.
Passemos os olhos nos elementos dessa liturgia.
1.1. Os presentes
Ninguém visita, fala ou presta alguma ajuda ao MST sem receber um presente:
um boné, uma camiseta, uma bandeirinha, um livro, um CD, uma flor. Se
homem, o presente será entregue por uma mulher, se mulher, por um militante
homem. Uma saudação, um abraço, palmas. Simples, singelo,
tocante. Se ainda se precisasse de algo para vincular a mística do MST
às raízes mais profundas da nossa nacionalidade, bastaria lembrar
que presentear o visitante é costume rural cujas origens encontram-se
no forte componente indígena da nossa população.
1.2. A bandeira do MST
Um homem e uma mulher que simbolizam a igualdade entre os sexos. Nos assentamentos
do MST as mulheres não são obrigadas a cumprir o papel subalterno
que a cultura machista do país lhes impõe. O homem empunha uma
foice para lembrar o compromisso com a produção. Os dois estão
enquadrados por mapa do Brasil, a fim de afirmar o compromisso com a construção
da Nação.
1.3. A bandeira do Brasil
Não há reunião, grande ou pequena, em que a bandeira brasileira
não penda de algum lugar saliente. O curioso é que a bandeira
brasileira é um símbolo do poder da elite que proclamou a República,
no século XIX. Como o símbolo do opressor pode pontificar em uma
assembléia de militantes socialistas? A explicação é
simples: no decurso da história, um povo despolitizado apropriou-se do
símbolo da elite, sem perceber seu significado e atribuindo-lhe outro:
o da Nação que querem construir. Não foi assim que aconteceu
com o símbolo romano da morte execrável, transformado pelos cristãos
no símbolo de uma vida gloriosa?
1.4. A celebração
Reuniões, pequenas, grandes ou enormes, começam sempre com uma
celebração. Ela será rápida nas reuniões
pequenas, demorada e complexa nas grandes. Os elementos dessas celebrações
são sempre os mesmos: terra, água, fogo, espigas de milho, cartilha
de estudante, enxada, flor. As palavras são poucas. Poéticas e
convincentes, resgatam os poetas populares e os grandes poetas brasileiros como
Haroldo de Campos, Drumond de Andrade, Pedro Tierra. O gestual é contido
e significativo: o canto, o punho cerrado, indicando a indignação,
a disposição de luta, a esperança. Canto puro dos trovadores
populares, surgidos dos grotões do país, como Zé Pinto,
Zé Cláudio, Marquinho, que se junta ao canto da mais fina flor
dos artistas brasileiros: Chico Buarque, Tom Jobim, Caymmi, Milton Nacimento.
1.5. Os ícones
As celebrações são sempre enquadradas pelos grandes retratos
de lutadores do povo. Aqui explode o sincretismo da mística dos sem-terra:
Marighela, o líder comunista guerrilheiro, figura ao lado de Paulo Freire,
o revolucionário pedagogo católico; Rosa de Luxemburgo junto com
Madre Cristina, freira católica; Florestan Fernandes, sofisticado intelectual
marxista, vizinho ao Padre Josimo, cura do sertão, assassinado pelos
jagunços do latifúndio; Carlos Marx ao lado de Jesus Cristo.
Quem se espanta com a mescla, na verdade, conhece muito pouco da mentalidade
do povo brasileiro e nem parece também estar ao tanto das verdadeiras
dimensões do humanismo socialista.
Toda liturgia é uma pedagogia. As celebrações, que antecedem
as reuniões de trabalho, trazem à memória dos participantes
os valores da sua mística: a solidariedade, o internacionalismo, a disposição
de luta. Essa simbologia identifica o grupo e o vincula ao passado, mas, ao
mesmo tempo o projeta no futuro, com a imagem de um Brasil justo, onde corram
"o leite e o mel".
2. O MST e as esquerdas
O peso da mística na conduta do MST leva-o a atritar-se permanentemente
com a elite dominante. Ela não suporta a independência do movimento.
Mas até na esquerda o MST cria atrito.
Tendo de atuar em uma conjuntura extremamente adversa, os partidos de esquerda
desenvolveram, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, estratégias
defensivas que deixam de lado as propostas de transformação radical
da sociedade, para enfatizar os "pequenos avanços" (uma velha
discussão, como sabemos). Nesse contexto minimalista, a ação
do MST, propondo a revolução socialista, igualitária, libertária,
ética, aparece como uma crítica e como um desvio voluntarista
primário.
Essa esquerda, que se rendeu ao impossibilismo em nome da modernidade, não
pode compreender que, em uma sociedade em que a alienação tornou-se
um elemento orgânico da consciência coletiva, se fale abertamente
em revolução socialista. Daí a crítica fácil
e surrada de que se trata de um milenarismo primitivo, desconectado do mundo
real, incapaz de liderar um processo efetivo de transformação
gradual do capitalismo em um regime humano. O equívoco consiste em não
ver que, no milenarismo do MST, o componente passado constitui o resgate da
cultura camponesa, matriz da nacionalidade e que, ao lado dessa referência
ao passado, essa mística aponta fortemente para o futuro socialista.
É um grave erro subestimar a importância do mundo rural nos processos
revolucionários modernos. Todos eles, como vimos, só conseguiram
vencer a repressão do sistema porque os guerrilheiros estavam no campo,
"como peixe na água". O que são as FARCs, o EZLN e o
MST senão demonstrações patentes de que o milenarismo agrário
é altamente significativo em sociedades basicamente agrárias?
E não tenhamos dúvida: a despeito da urbanização
desarrazoada e da industrialização postiça, a sociedade
brasileira permanece fundamentalmente agrária e não se libertou,
por mais que procure esconder, do seu passado colonial e escravocrata. Sem exorcizar
esse passado, o Brasil jamais será uma Nação independente
e menos ainda uma sociedade socialista.
Duas frases de Caio Prado Jr., um dos nossos mais importantes pensadores, resumem
o problema. A primeira: "... no campo brasileiro é que se encontram
as contradições fundamentais e de maior potencialidade revolucionária
na fase atual do processo histórico-social que o país atravessa."
A segunda: "Não é preciso insistir muito no fato que sobre
a base de miséria física e moral que predomina no campo brasileiro,
e se reflete tão intensamente, como não podia deixar de ser, nos
centros urbanos, não é possível construir uma nação
moderna e de elevados padrões econômicos e sociais".(4)
Não perceberam os intelectuais que se querem modernos, (alguns deles
trânsfugas do próprio MST) que o socialismo no Brasil está
umbilicalmente ligado ao processo de construção da Nação
brasileira e que a energia desse processo provém da enorme contradição
de uma sociedade que deu liberdade aos escravos, mas negou-lhes o acesso à
terra, com o propósito evidente de não alterar a condição
de sobre-exploração da força de trabalho rural.
O economista brasileiro Celso Furtado viu o que muitos de seus colegas deixaram
de ver: a importância estratégica do MST para a construção
nacional; e por isso não teve dúvidas em afirmar enfaticamente,
contrariando até seu estilo sempre contido, que esse movimento é
o mais importante do século XX no Brasil e se liga organicamente ao mais
importante movimento do século XIX: a abolição da escravatura.(5)
O MST é a continuação daquele movimento, mas com um significado
histórico diverso. Enquanto a campanha abolicionista, depois de quase
vitoriosa, foi abortada por um golpe palaciano que a diluiu em uma conciliação
das facções das classes dominantes, transformando a libertação
dos escravos em um "negócio de brancos para brancos", o MST
impede que a atual elite aborte a reforma agrária. Seu lema "reforma
agrária, uma luta de todos" é um chamado geral, que não
se esgota no campo, mas na construção nacional. O motor dessa
luta é a mística libertadora.
1 Político e um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT). Ele
é formado em Direito pela Universidade de São Paulo e tem pós-graduação
pela Cornell University. Consultor da FAO-ONU. Cassado em 1964, exilou-se no
Chile. Sua carreira política, ao retornar ao Brasil, inclui o mandato
de deputado federal em 1985, deputado constituinte em 1986-90 e a candidatura
ao governo de São Paulo. Atualmente dirige o Correio da Cidadania, semanário
que comenta os eventos divulgados pela grande media.
2 Boff, Leonardo, "Alimentar a nossa mística", mimeo. 2001.
3 Bogo, Ademar, Valores que deve cultivar um lutador do povo, in Valores de
uma prática militante, Consulta Popular, Cartilha 09. 2000.
4 Caio Prado Jr. A Revolução Brasileira. 7.ed. São Paulo:
Brasiliense, 1987.
5 Furtado, Celso. Brasil: A construção interrompida. Paz e Terra.
1992..
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