Muito já se falou e escreveu sobre a luta pela reforma agrária.
Prós e contras. Escreveu-se sobre sua viabilidade econômica, sobre
a trajetória histórica dos movimentos camponeses e suas
lideranças. Sobre a necessidade de superar a gritante
concentração de terra existente em nosso país. Sobre o
poderio econômico, social e político dos coronéis do campo.
Sobre os promissores resultados obtidos pelas famílias assentadas.
Não faltam até mesmo registros sobre os diferentes governos que,
demagogicamente, sempre prometeram fazer a ñ nunca realizada ñ
reforma agrária.
E, correndo o risco de parecer contraditório, é exatamente por
nunca ter sido realizada que a reforma agrária escreve uma das
páginas mais ricas da história de nosso país. A luta dos
trabalhadores para se libertar da opressão do latifúndio e
democratizar o acesso à terra determinou fatos marcantes de nossa
história, desde a chegada dos portugueses até os dias de hoje: a
luta dos povos indígenas para não serem escravizados ou
exterminados física e culturalmente; os quase quatrocentos anos de lutas
dos povos negros contra os grilhões do trabalho escravo, pilar de
sustentação e de desenvolvimento das grandes fazendas; a coragem
heróica dos sertanejos liderados por Antônio Conselheiro no
Nordeste, e dos camponeses da região do Contestado, no sul do
país; a façanha das Ligas Camponesas, que tanto assustaram as
elites deste país simplesmente por terem se organizado e lutado pelo
direito a trabalhar na terra, livres da humilhação dos usineiros.
Esses são apenas alguns exemplos da luta histórica de nosso povo
contra o latifúndio.
Agora, depois de passar um longo período esquecida, a luta pela
reforma agrária voltou a ocupar espaço na mídia e nas
discussões sobre os problemas centrais de nosso país. Contrariando
as afirmações de muitos estudiosos e especialistas, que
consideravam a questão agrária já superada, e rompendo o
bloqueio de informações imposto pelas elites, o debate sobre a
reforma agrária voltou a figurar no cenário nacional.
Há quem pense que o destaque hoje obtido pela reforma agrária
é apenas uma onda passageira, conseqüência da
popularização do tema graças a uma novela de
televisão(1). Para o governo, trata-se simplesmente do barulho provocado
por pequenos grupos que lhe fazem oposição. Muitos tentam
menosprezá-la dizendo que tem motivação política,
como se a reforma agrária não fosse um problema essencialmente
político. Esquecem-se de que, por trás das lutas, dos protestos
das praças, das longas caminhadas, debaixo das lonas pretas dos
acampamentos, há vidas. Vidas sofridas por causa da fome e do frio. Vidas
ameaçadas pelas armas assassinas do latifúndio e pela
arbitrariedade da polícia. Vidas marcadas pela dor de ouvir o choro de
uma criança com fome. Vidas que foram privadas do acesso à
saúde, à educação e aos benefícios
proporcionados pelos avanços científicos e tecnológicos.
Vidas calejadas pela exclusão social a que foram submetidas durante os
quinhentos anos de nossa história.
Mas, por trás da luta pela reforma agrária, há
também vidas alegres ao ver seus filhos desenharem a primeira letra do
alfabeto. Há vidas esperançosas que sonham com o primeiro plantio,
a primeira colheita, a primeira mesa farta com alimentos. Há vidas
solidárias ao receber as visitas, os incentivos, os donativos dos que
partilham o mesmo sonho de ver a reforma agrária acontecer. Há
vidas corajosas que não temem cortar o arame farpado do
latifúndio, única alternativa para vislumbrar dias melhores para
suas famílias.
Com tanta vida, como imaginar que a luta pela terra seja modismo ou
manipulação política? Pode ser que o espaço da
mídia seja passageiro, uma vez que, como a terra, os meios de
comunicação estão quase todos concentrados nas mãos
de uma elite conservadora, avarenta de riqueza e poder, plenamente identificada
com os interesses dos latifundiários.
Porém, a teimosia de nosso povo, a necessidade de satisfazer as
condições básicas de uma vida digna e a certeza de que
é possível construir um Brasil democrático, socialmente
justo e igualitário, nos dão a garantia de que a luta pela reforma
agrária somente cessará quando a propriedade da terra for
realmente democratizada.
Há vida na luta pela terra. Há vozes. Vozes que muitas vezes
parecem apenas vindas das lideranças que recebem espaço na
mídia, nos debates, nos atos públicos. Mas elas são caixas
de ressonância das vozes dos acampamentos, das marchas, das lutas e das
conquistas.
Essas Vozes da Marcha pela Terra são o registro histórico dos
que realmente fazem a história: os trabalhadores anônimos. Nossos
militantes da reforma agrária.
O relato de vida das pessoas entrevistadas é a melhor defesa que se
poderia fazer da reforma agrária. Nele encontramos os dramas, as
conquistas, as alegrias e tristezas, a coragem e o medo dos que lutam, os
desafios que foram superados, o orgulho de estar presente na luta o
companheirismo, a solidariedade e a identidade forjadas ria vida de um
acampamento, a ousadia de vencer o latifúndio.
Como não se emocionar com o relato desses lutadores e lutadoras? Como
permanecer insensível diante da canção feira por Cristiane
de 14 anos, que diz: "Sou criança e sei pensar. Tenho direitos e vou
cobrar uma vida digna"? Como não admirar a coragem de Maria José,
que não hesita em afirmar: "Se tiver que morrer na luta, vou morrer. Mas
não vou sair daqui de cabeça baixa". Como não se comover ao
constatar que Lúcia, de 23 anos" está impregnada da felicidade de
se sentir artífice de um futuro melhor para sua família, e de
cotidianamente viver em comunhão com pessoas que acreditam e amam"? Esta
é a luta pela reforma agrária. Estas são as pessoas que
estão fazendo esta luta.
As entrevistas realizadas são fundamentais para quem quer compreender
o que é essa luta, qual é o combustível que move essas
pessoas, quais são seus sonhos. São matéria
indispensável para quem quer saciar a sede diretamente na fonte. Estes
relatos exalam o cheiro da terra, do povo, da vida.
Mas os depoimentos das entrevistas não servem apenas para os que
querem conhecer e entender a luta pela terra. Eles são
indispensáveis também para os que já estão na luta.
São depoimentos que nos servem de incentivo e ânimo. São
testemunhos de vida que nos dão certeza de que estamos no caminho certo e
que as conquistas são recompensadoras. São a certeza de que cada
militante da luta pela reforma agrária encontrará nestas
páginas o incentivo necessário para continuar lutando. São
a história de vida de nosso povo lutador.
A riqueza destes relatos estaria comprometida, porém, se eles
encontrassem ouvidos insensíveis. Mas a entrevista não se limitou
a apresentar perguntas e recolher respostas. Ela teve o mérito de captar
os sentimentos, de saber ouvir e respeitar as características de cada
entrevistado. A interação entre entrevistador e entrevistado
resultou nesta coletânea de depoimentos de vida, que não é
um mero amontoado de entrevistas. Nesse detalhe também reside a riqueza
deste livro.
Certamente ele será de grande importância para que a reforma
agrária atinja amplos setores da sociedade e atraia um número
maior de simpatizantes e militantes para nossa luta. Somos gratos a todos os que
contribuíram de alguma forma para a elaboração e a
edição deste precioso depoimento histórico.
(1) O autor se refere aqui à telenovela 0 Rei do Gado, apresentada
pela Rede Globo durante o ano de 1996, que abordava o tema da reforma
agrária e do MST.
Nota do editor: Texto publicado como prefácio ao livro Vozes da
marcha pela Terra (org, Andrea Paula dos Santos, Suzana Lopes Salgado Ribeiro,
José Carlos Sebe Bom Meihy. São Paulo: Edições
Loyola, 1998). O livro, produzido no Departamento de História da
Universidade de São Paulo, reúne os relatos de vida de 16 pessoas
que participaram da Grande Marcha Nacional pela Reforma Agrária, Emprego
e Justiça, cujas colunas, saindo de todos os cantos do país,
chegaram a Brasília em 17 de abril de 1997. Reprodução
autorizada pelo autor.
João Pedro Stedile é a economista formado pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, com
pós-graduação na UNAM (México).Assessorou a
Comissão Pastoral da Terra. Um dos fundadores do MST e atual membro da
Direção Nacional. É autor de Questão agrária
no Brasil. (São Paulo: Atual Editora, 1997), A luta pela terra no Brasil,
juntamente com Frei Sérgio (São Paulo: Scritta, 1993), A reforma
agrária e a luta do MST (Petrópolis:Vozes, 1997), Brava gente: a
trajetória do MST e a luta pela terra no Brasil, juntamente com Bernardo
Mançano Fernandes (São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 1999).
|