As vertentes artísticas do MST estão ligadas às raízes
camponesas, na sua forma simples e criativa de produzir a existência.
A maneira contemplativa como o Sem-Terra se relaciona com as coisas demonstra
que a produção de si mesmo está vinculada à produção
da existência de todas as espécies. O Sem-Terra é um ser
paciente em sua origem. Pela natureza de suas atividades, obriga-se a respeitar
o ciclo do desenvolvimento da natureza, para poder defender sua própria
vida. É esse mistério de preparar o solo que motiva nele a força
fertilizadora, fazendo-o imaginar a semente germinando, elevando-se sobre este
leito vermelho, para tornar-se planta com flores, frutos verdes, depois frutos
maduros, para deixar nascer a festa da colheita que se transforma em fartura,
saciando as necessidades da família onde se desenvolvem outras relações,
de amor e afetividade.
Na origem das letras das músicas dos poetas Sem-Terra está a
vida que desabrocha do chão e passeia por outras diferentes formas de
vida. Há, portanto, utopia nesse divagar sobre as coisas. O tempo da
espera é um tempo fértil. É uma espera que se move em direção
à realização dos sonhos ou das frustrações
inesperadas. Aí o poeta se torna melancólico e canta os sofrimentos
para se aliviar deles, como o lobo ferido que uiva para externar sua dor. Estas
características se deslocam para as músicas que relatam a ação
política e, por termos uma consciência maior de como funcionam
as dificuldades, há uma mistura de revolta, melancolia e mística
que promete resistência. Ao mesmo tempo em que a música denuncia,
anuncia. A dor se mistura com a festa, tornando-se momentos menores dentro deste
grande espaço de conquistas e vitórias que nascem no corpo da
história feita.
Foram os teóricos e artistas interesseiros que divulgaram uma imagem
deformada e posteriomente desenraizaram o sertanejo para urbanizar suas características.
O mundo dos Sem-Terra nada tem a ver com o Jeca Tatu (2) e muito menos com o
Cowboy que apenas se manifesta nos rodeios oficializando a cultura do boi, ou
do colonialismo texano. O Sem-Terra é, acima de tudo, alegre e solidário,
porque aprendeu a viver e a sonhar com seus semelhantes. Há arte nas
formas de se organizar, educar e produzir, porque há sonhos sendo construídos
pela combinação dos gestos de cada mão. A arte na luta
pela reforma agrária é o elemento que dá colorido aos passos
que desenvolvemos conscientemente.
Os artistas são a encarnação e a expressão de seres
que aprenderam a produzir sonhos olhando para o horizonte que acena por detrás
do latifúndio protegido pelo poder dos governantes e das armas assassinas.
Cantar para os Sem-Terra é contar pedaços de sua história,
feita pela obrigação que impõe as necessidades. Os lamentos
são gemidos de dor que os poetas e cantadores captam das nuvens de rebeldia,
que nasce da decisão de mover os pés para frente, em busca desta
colheita coletiva. Há ainda, nesse universo, outras formas de expressão
da arte, como o teatro onde as pessoas encenam sua própria história,
sem escrever previamente as peças. É uma perquisa feita no arquivo
de cada memória que se transforma em arte contada com o corpo, enquanto
a boca fica calada para conter os soluços. A isto chamamos de mística.
É o mistério de se conseguir juntar o ontem com o amanhã
que se aproxima.
Temos a pintura que faz de nossas casas nos assentamentos verdadeiras obras
de arte. Cada família expõe sua consciência estética
a partir do que conseguiram vivenciar na dura trajetória da busca da
libertação da terra e do próprio corpo. As paisagens montadas
ao redor e dentro do espaço em que cada família produz sua existência,
nos povoados e comunidades, são a forma prática de demonstrar
que a utopia está presente em tudo o que fazemos. Os rios e lagos rodeados
de árvores e flores, com casas feitas ao pé da montanha, com animais
servindo de brinquedos para as crianças, estão no quadro da vida,
pintados pela própria capacidade que cada um tem de conviver, demonstrando
que somente é arquiteto dos próprios sonhos aquele que consegue
fazer de sua existência uma pintura viva e se modifica a cada movimento
da respiração.
A arte é, portanto, o fator que unifica pela beleza e dá criatividade
aos passos que damos em busca da construção de uma nova sociedade.
Sem a arte, a luta se entristece. As pessoas deixam de ser autênticas
na busca de suas próprias fantasias e passam a construir as fantasias
alheias.
Nota do editor: O Jeca Tatu é um estereótipo negativo do homem do campo brasileiro que se consolida na sua representação literária em Urupês, de autoria de Monteiro Lobato (1918). Ele é um ser doentio, indolente, desanimado, atrasado, fatalista e ingênuo. Mais tarde, Monteiro Lobato passou a entender que a preguiça não era um atributo do homem do campo, mas resultante de doenças e da miséria em que vive; novas histórias foram escritas nas quais o Jeca Tatu se cura, promovendo uma mudança social.
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