"Se valem dos poetas os presságios".
Ovídio, Metamorfoses.
Antônio Gramsci, logo nas primeiras linhas de seus "Apontamentos
e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais"
reunidos no décimo segundo volume dos seus Cadernos do Cárcere
afirma que "Todo grupo social, nascendo no terreno originário
de uma função essencial no mundo da produção econômica,
cria para si, ao mesmo tempo, organicamente uma ou mais camadas de intelectuais
que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função,
não apenas no campo econômico, mas também social e político..."(2)
Esta criação historicamente determinada e fruto de formações
sociais específicas é filha direta da fricção
entre a coletividade e a realidade em que ela se constitui. A essa realidade
correspondem divisões de tarefas, especializações e necessidades
de desenvolvimento e complexificação de qualquer agrupamento humano.
Na medida em que ela se produz, reproduz e desenvolve, tende a ser estimulada
e construída conscientemente.
Desta forma, é possível que uma intelectualidade própria
abarque múltiplas áreas de intervenção e articule
suas diversas atividades no seio da superestrutura, na organização
de "bloco intelectual" no interior do bloco histórico e na
disputa com o pensamento tradicional.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra do Brasil vem intervindo com
êxito nesse estímulo e nessa construção. Tanto pela
valorização de uma produção teórica que possa
contribuir para o fortalecimento de sua causa, quanto na sua própria
formulação e na promoção de iniciativas com diversos
segmentos da população vinculados a ele ou não
e que abarcam vários aspectos da vida e múltiplas áreas
de conhecimento e interesse. Outrossim, como parte integrante destas atividades
político-organizativas do MST, uma das dimensões do seu trabalho
poético é incidir e contribuir no processo de "criação"
de um intelectualismo orgânico e de uma militância consciente, que
é particularmente importante se levarmos em conta que o vínculo
entre os intelectuais orgânicos, os militantes e os grupos sociais é
singularmente mais estreito quando eles são originários dos próprios
grupos.
Construído e temperado no ascenso das lutas e organizações
populares que se desenvolveu no Brasil nas décadas de 70 e 80, o MST,
ao longo de sua existência, tornou-se o mais vigoroso e profícuo
movimento camponês do País. Com amplitude tática e firmeza
de princípios, tem resistido, positivamente, tanto às investidas
da violência latifundiária quanto às tentativas de envolvimento
e cooptação promovidas pelas forças conservadoras.
Com suas lutas, conquistas e vitórias, o Movimento recolocou na pauta
política, como uma questão nacional incontornável, o combate
ao monopólio da terra e a busca de um modelo agrícola alternativo,
capaz de atender às necessidades e demandas das populações
camponesas e das grandes maiorias: a Reforma Agrária. Nesse caminho,
construiu uma vasta rede de entidades, instrumentos, militantes, apoiadores,
simpatizantes e contatos que, articulados, reforçam-se mutuamente e disputam
o destino das áreas rurais brasileiras apropriadas por uma minoria. Assim,
com capacidade de mobilização social e combatividade incomuns,
transpôs sua influência para além de si próprio. Hoje,
é uma referência segura para os pioneiros sociais e os setores
mais combativos do bloco histórico, no campo e na cidade.
Talvez o maior mérito dos "Sem-Terra" tenha sido a capacidade
de afirmar-se num período histórico em que as forças populares
se encontravam perplexas e acuadas diante da ofensiva neoliberal. O mundo do
trabalho, em suas diversas dimensões, era pressionado e desmoralizado.
Diziam-lhe, com poucas réplicas, que estava em vias de extinguir-se numa
história afinal terminada. Potencializado pela hegemonia do "pensamento
único", um sentimento brutal de impotência invadiu a sociedade
civil e gerou um retrocesso de valores e direitos, um refluxo nas mobilizações
e uma gama de obstáculos e dificuldades que parecia esmagar-nos. A mesmice
nem sequer poupou o movimento sindical, que, desde a segunda década do
século vinte, cumprira um papel destacado no processo político
brasileiro, culminando na resistência democrática ao regime militar.
Como pano de fundo da reação política, a chamada terceira
revolução técnico-científica e a reprodução
do capital financeiro desregulada articulam e são articuladas
por um surto de crescimento das telecomunicações e a "globalização"
de determinados padrões hegemônicos que tensionam na direção
de uma certa generalização de costumes. É nesse terreno
que prospera a mitologia do fim das ideologias e a estandardização
da vida política e social. Paradoxalmente, o contraponto particularista
mergulha a sociabilidade num esgarçamento fractal e impotente, em que
o outro deixa de ser a possibilidade associativa da liberdade para ser o estranho
de uma das múltiplas tribos isoladas entre si. Em nome da modernidade,
a direita dissemina a esquizofrenia pós-moderna. A razão e a verdade,
descartadas pelo capital como coisas antediluvianas, cedem lugar ao irracionalismo
e ao relativismo. A estética é rebaixada a um vulgar culto de
"velhas novidades", como cantou a música popular brasileira
nos versos do saudoso Cazuza.
Somente no interior deste complexo quadro histórico-cultural
aparentemente árido, mas de fato rico em contradições e
transformações será possível considerar e
compreender a petulante e desafiadora "poesia dos sem-terra brasileiros".
Seria até possível, mas pedante e grotesco, analisá-la
a partir da vida espiritual das "elites" intelectuais, ideologicamente
burguesas. Ou procurar sua realização numa glamourização,
não menos pedante e grotesca, a partir de um pretenso exotismo autóctone
ou de uma compaixão piegas bem ao gosto das grandes corporações
midiáticas. É preciso entendê-la como uma manifestação
cultural contraposta à dissolução das alteridades sociais,
à altura do seu tempo. Mas absolutamente moderna, porque portadora de
um projeto radicalmente comprometido com a negação da realidade
que teima em reproduzir-se.
O caminho por onde passa a criação artística dos sem-terra
não é aquele do espírito inoculado por Calíope em
alguns escolhidos ou de um ritual de iniciação de um suposto potencial
poético inerente aos seres humanos. Ao contrário, são as
avenidas da atividade humano-sensível, da práxis dos seus autores,
com centralidade nos seus processos de trabalho e vidas característicos.
Mesmo quando assumem autonomia em relação ao universo prático
e partem para abstrações e universalidades mais abrangentes, as
poesias dos camponeses do MST mantêm suas articulações com
representações imediatas e buscam desvendar e transmitir experiências,
compartilhar e exprimir sensações e emoções brotadas
no mundo mesmo que os cerca. Suas "místicas" são profanas.
Assim, no sentido inverso da hegemonia conservadora que criou e alimenta
uma distância abissal entre as conquistas estéticas humano-universais,
degeneradas em abstrações inertes, e aquelas elaboradas a partir
de experiências cotidianas que respeitam a transcendência
as produções dos deserdados da terra contribuem para estreitar
estes vínculos humanos, abrindo novas possibilidades de elaborações
e construções em níveis superiores.
Ao assumir o envolvimento em valores e posturas questionadoras da sociabilidade
vigente embutidos na produção cultural integrada à
ordem e a ela associados e demarcar com a ideologia dominante, a poesia
feita pelos homens e mulheres que andam de enxada nas mãos se transmuta
em meios de resistência e combate, partes integrantes de um movimento
contra-hegemônico, semeador de esperanças e anunciador de um novo
Brasil e de um novo mundo. Ao valorizar o desenvolvimento das potencialidades
criativas de si próprios e de cada um, esses singulares menestréis
são também suportes de momentos de fortalecimento individual e
coletivo da auto-estima, da autoconfiança, da solidariedade entre seus
companheiros, verdadeiros pedagogos da promoção e da formação
dos ativistas e militantes que andam e cantam ao seu lado.
Assim são. Mas antes de ensinarem, aprendem. Ao se realizarem como autores,
deixam a condição de meros espectadores feuerbachianos do mundo
e investem na sua percepção, na sua interpretação,
na dimensão das abstrações e na necessidade de expressá-lo
na perspectiva de transformá-lo. Tal gnosiologia, que parte da sensibilidade
prática, incorpora-se ao processo de estruturação de uma
inteligência que favorece a abertura de novos horizontes e saberes, buscas
e destinos, e o fortalecimento de uma intelectualidade orgânica. Agora,
com seus membros, é possível rivalizar com os mecanismos e conteúdos
ideológicos e culturais conservadores da ordem, incorporando à
consciência dos trabalhadores a rebeldia e o amor à liberdade,
construindo os consensos dos "de baixo" contra os consensos dos "de
cima", ou seja, desafiando, em cada verso, a submissão passiva política
e cultural.
O MST e seus artistas podem, pois, expressar-se, e ter consciência de
fazê-lo, a partir de um novo ângulo: o da insubmissão e da
crítica ao status quo. E, com base nos seus acúmulos, rompem com
a dependência diante daqueles que se outorgaram não se sabe
com a licença de que Deus ou Diabo desta "terra do sol", e
de Glauber Rocha (3) o direito e o privilégio monopólico
de pensar e produzir insumos culturais e políticos. Por mais singelo
ou rude que seja um poema, no seu instante conseguirá expressar as angústias
e alegrias, as renúncias e desejos dos que teimam em falar de si, por
si mesmos, para si e os outros. Alguém duvida de que estão tensionando,
a seu modo e no seu lugar, a necessidade no sentido de uma nova realidade e
uma nova cultura?
Não é o caso de estabelecer uma mecanicista escala de valores
estéticos excludentes e simplistas, e muito menos de criticar intelectuais
de outras origens e outras vertentes que optam por cantar, generosa e admiravelmente,
uma realidade com a qual apenas convivem. E são muitos, embora ainda
poucos, os Chicos Buarques, os Haroldos, os Salgados, os Saramagos (4)... Trata-se
de ressaltar a força que ganha uma literatura erguida pelas mãos
e mentes daqueles que estão imersos no próprio tema material
e espiritual escolhido. Somente uma produção poética
assim, viva, agregadora de particularidades e construtora de propósitos,
edificada à revelia do oficialismo, e contra ele, será capaz de
fazer frente à pasteurização cultural do Planeta, espanar
a poeira do arcaísmo pós-moderno, refundar a modernidade e plasmar
uma universalidade capaz de conviver, respeitar, apreciar e alimentar-se das
singularidades e diversidades.
1 Sávio Bones é Diretor do Instituto ProJeto, membro do Coletivo
de Sócios da Revista Práxis e do Conselho Editorial do Correio
da Cidadania. Integra o Coletivo da Secretaria Agrária Nacional do Partido
dos Trabalhadores (PT) e o corpo de assessoramento da Confederação
Nacional dos Trabalhadores do Setor Mineral. Técnico de Estradas. Foi
dirigente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) seção
Metropolitana de Belo Horizonte e membro das comissões executivas
do PT de Belo Horizonte, do Diretório Estadual de Minas Gerais e do Diretório
Nacional.
2 Gramsci, Antônio. Cadernos de Cárcere. Volume 2. Caderno 12
Apontamentos e Notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a história
dos intelectuais. Edição de Carlos Nelson Coutinho com Marco Aurélio
Nogueira e Luiz Sérgio Henriques. Tradução de Carlos Nelson
Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2000,
p. 15.
3 Nota do editor: Deus e o diabo na terra do sol, filme de Glauber Rocha (1964),
é um clássico do Cinema Novo Brasileiro. No Nordeste brasileiro,
cenário de violentas e historicamente arraigadas tensões em torno
da terra, são representadas as esperanças de um casal de camponeses,
Manuel e Rosa, e suas ligações com duas formas de contestação
do poder religioso e econômico, o messianismo e o banditismo social, mais
especificamente, o cangaço. O messianismo, por liberar o campesinato
da dominação, constitui uma preocupação para os
grandes proprietários de terra e para a igreja católica. Numa
das cenas marcantes do filme, os camponeses, unidos pela força do messianismo
no Monte Santo, são massacrados pelos poderes estabelecidos, sendo Rosa
e Manuel os sobreviventes que relatam a história e aderem ao cangaço.
4 Nota do editor: O autor se refere aqui a artistas que, através de
suas obras, hipotecaram sua solidariedade aos Sem Terra. Muitas dessas expressões
se encontram neste website, no arquivo Depoimentos de Intelectuais e Artistas
Brasileiros em Apoio ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
|